Tirar o manto da invisibilidade

“Rio 40º/ Cidade maravilhosa/ Purgatório da beleza e do caos.”
Acho que poucas pessoas entenderam tão bem a alma da cidade do Rio de Janeiro, como a Fernanda Abreu. Ainda somos a cidade partida de Zuenir Ventura.
“Capital do sangue quente/ Capital do melhor e do pior do Brasil.”

No último sábado fui com um amigo aproveitar o melhor do Brasil – andar de bike, aproveitando o visual da Niemeyer. Existe programa melhor? Nós, cariocas, somos mimados. Estamos habituados a vistas incríveis, sem muito esforço: são milhares de trilhas, praias, ciclovias… Tudo à nossa disposição. Nesse sábado não foi diferente. Chegamos a São Conrado por volta das 16h30, ainda encantados com a mini ressaca batendo nas pedras, quando vejo uma menina nova com os cabelos cortados quase que raspados, por volta dos 14 anos, andando pela rua completamente nua. Meu primeiro pensamento foi – drogas e loucura. Um sentimento de pena tomou conta de mim. Só podia ter algo de errado. A cena toda era surreal. Ela, com os braços cruzados sobre o peito, andando como se tivesse passeando normalmente pela rua, as pessoas todas à volta, como se ela não estivesse ali. Todos anestesiados. Vida que segue, cada um fazendo o que estava fazendo antes. Não pude virar o rosto e fingir que não tinha visto. E tendo visto, não podia não fazer nada. Fui até ela e perguntei, sem graça, se precisava de uma roupa. Ela disse que sim. Tirei minha blusa e a ajudei a vestir. Era tudo o que eu tinha. Como era bem magrinha, a blusa deu para enganar um pouco e a cobrir um mínimo. “Quer uma água, um sanduíche?” “Um sanduíche. Tô com fome.” Estávamos em frente a um quiosque desses que servem refeições.

Todas as mesas lotadas. Agora nos olhavam, mas eu continuava com a impressão que não a viam. Ninguém se mexeu. Ninguém ofereceu ajuda. Quando pedi um sanduíche o garçom me olhou torto e disse que tinha que falar com a proprietária que logo veio. Também com cara de poucos amigos e como se me perguntasse o que eu estava fazendo ali com aquela menina. Pegou o meu dinheiro e nos deixou esperando. O sanduíche só foi feito depois que todos os pratos de uma mesa grande foram servidos. Não éramos prioridade. Não devíamos estar nem ali. Na praia acontecia uma gravação e o pessoal do apoio que acompanhou toda a cena a uma distância segura, veio trazer um pano preto que transformamos em saia. Enquanto esperávamos o sanduíche tentei descobrir o que tinha acontecido – ela, Mayara, tinha sido violentada. Mas Mayara contou isso como se dissesse fui ali e voltei. Assim como ela andava, sem roupa, pela rua – mais um fato do dia a dia. Não consegui descobrir aonde ela morava ou muito mais que isso.

O Rio é uma cidade de cidades misturadas/ O Rio é uma cidade de cidades camufladas/ Com governos misturados, camuflados, paralelos/ Sorrateiros ocultando comandos. Choque da realidade. Impotência. Impotência perante a dureza da vida, do cotidiano, da invisibilidade dos moradores de rua. Não pude fazer muito mais. Procurei na internet algum abrigo que a pudesse levar e para não dizer que não achei nada, achei um no Leblon que ninguém atendeu. Levar para a polícia? Se a polícia não dá conta das mulheres abusadas que estão inseridas na sociedade, o que dizer de uma moradora de rua? Meu mundo partiu. Me senti ferida na alma em solidariedade à todas as Mayaras que hoje vivem na rua, à mercê da violência e circunstâncias. Nada pude fazer para mudar essa realidade além de dar um pouco de comida, roupa e carinho. Enxergar. Olhar nos olhos e mostrar – eu me importo. Você merece mais. Eu estou te vendo.

Domingo voltei para tentar encontrá-la, levando uma bolsa de roupas com um kit de higiene pessoal, já com o contato da Conselheira Tutelar, mas não a achei mais. Um homem que trabalha no quiosque no final da praia me contou tê-la visto no sábado, por volta das duas da tarde, indo em direção a Barra, mas que nunca a tinha visto antes. Ela não morava por ali. Ela circulou pela praia de São de Conrado, nua, por mais de duas horas e ninguém se aproximou dela para perguntar se precisava de ajuda.

Saio dessa experiência com uma ferida que não fecha. O que aconteceu com Mayara? O que eu podia e devia ter feito? Levado para um hospital? Levado para um Igreja, mesmo sem um projeto para moradores de rua? Quantas vezes desviei o olhar desses mesmos moradores de ruas, fingindo não os ver, ajudando a transformá-los em seres invisíveis? Que sociedade é a nossa que deixa uma pessoa andar nua por mais de duas horas e não oferece uma ajuda? Apenas olhares curiosos, mas insensíveis àquela dor?

A reforma da Previdência leva milhares à rua, mas a coisificação do ser humano, a violência contra a dignidade humana é incapaz de gerar uma ação simples como o estender de uma das mãos. Rio 40º/ Cidade maravilhosa/ Purgatório da beleza e do caos. Somos um dos povos mais simpáticos do mundo, mas não somos gentis com quem realmente precisa.

Segundo um levantamento da Secretaria Municipal de Assistência e Direitos Humanos do Rio realizado em 2016 são 14.279 pessoas morando na rua. Esse número triplicou nos últimos três anos. 14mil parece um número grande, mas nada impossível de ser resolvido. Com um pouco de boa vontade, bons projetos com pessoas competentes e sem tanta demagogia esses moradores de rua podem sim serem inseridos na sociedade, receberem capacitação profissional, educação. Mas eles não votam. Eles não se organizam e ocupam ruas. Eles são invisíveis. Falhamos como sociedade. Falhamos como indivíduos, cada um de nós, quando nós não os vemos. Eu falhei com Mayara. Podemos fazer mais e muito melhor. Começando por os enxergar. Tirar o manto da invisibilidade. Olhar nos olhos como quem diz: eu te vejo. Vamos dar um jeito nisso. Juntos podemos mais. Muito mais. Uma cidade mais humana. Com mais paixão e compaixão.

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